O Meu Compadre Vilela

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A notícia chegou durante o encontro da Turma Marechal Mascarenhas de Moraes (MMM) realizado no Circulo Militar da Praia Vermelha (CMPV), no dia 22 de janeiro, próximo passado. Essa reunião destinava-se a permitir a confraternização entre os integrantes da MMM/RJ e aqueles que participariam do Encontro Sobre As Ondas (ESAO). Confirmava-se, lamentavelmente, o falecimento do Tenente-Coronel José Raimundo Vilela, o popular “neguinho Vilela”, integrante da MMM e infante de Sampaio.  Que Deus o tenha. Não vou relatar o cadete Vilela. O cadete está nas nossas lembranças. Alegre, prestativo, boa praça e companheiro sempre pronto a prestar um favor, pelo simples prazer de ser útil. A alegada tradição de bons costumes dos filhos das alterosas e a bondade do mineiro era comprovada, dia a dia, no comportamento do Vilela. Não havia maldade no seu coração. Por mais que fosse incomodado resistia bravamente às brincadeiras dos demais cadetes, sem perder a esportiva ou revidar com palavras ofensivas.Vou relatar fatos do aspirante e, depois, do tenente Vilela. Chegamos ao 10º Batalhão de Caçadores, situado na capital do estado de Goiás, juntamente com o Timóteo, o Cordeiro e o Abreu. Cinco aspirantes numa unidade relativamente nova, com boas instalações, muitos problemas na área de material e, principalmente, de pessoal. Essas dificuldades naturais do nosso Exército eram desafios a vencer e alimentava a vontade de colocar em prática os aprendizados recebidos na AMAN. Por ser o único casado, recebia em minha residência a visita dos demais companheiros antes de partirem para os seus naturais reconhecimentos dos locais de sadia diversão na cidade de Goiânia. Era o momento de cafés, pedaços de bolo e papo agradável entre velhos companheiros. Quando a Clara engravidou, era dos integrantes da MMM que recebíamos as mais sinceras manifestações de preocupação com a saúde da mamãe e da futura criança. O Cordeiro, Timóteo e Abreu estavam noivos ou bem encaminhados em direção ao casamento. O Vilela não tinha namorada firme. Não pensava em casório. A vida lhe sorria e ele procurava viver em toda sua plenitude. Portanto, nada de compromisso sério.

Ao nascer a minha única filha, Marta, convidei os meus companheiros de MMM para serem os padrinhos. A madrinha foi a Leila, esposa do meu compadre Cordeiro, que na época já havia se casado. Na igreja o Vilela assumiu o cargo de padrinho de forma muito objetiva, de maneira que, nas fotografias que materializavam o batizado, ele se destaca ao lado da Leila, nos momentos solenes que caracterizam a imposição desse sacramento da Igreja Católica. Foi o padrinho dedicado e presente enquanto estivemos juntos por dois anos. Depois, ele seguiu o seu caminho, mantendo sempre os contatos no aniversário da Marta e presenteando-a nas oportunidades.

O fato que passo a descrever foi vivenciado pelo Vilela e o seu desfecho bem caracteriza o especial ser humano que nos acompanhou nas jornadas em Goiânia. Uma noite, já no posto de tenente, após tomar um cafezinho e brincar com a sua afilhada, o Vilela se despediu da Clara e recebeu a minha recomendação para que ficasse atento com os perigos da cidade. Embarcou na sua TL branca, personalizada, cheirando a nova e rumou em direção do centro da cidade. O carro do Vilela era uma máquina da Volks fora do alcance financeiro de tenentes casados. Para nós, simples mortais, o fusca estava dentro do orçamento. O carro do ‘“neguinho” teria que ser planejado para uma aquisição futura. Era muito bonito e bem conservado, característica de nós brasileiros e próprio de quem utiliza o carro como instrumento para conquista amorosa.

Ao atravessar a principal Avenida do bairro Vila Nova, o seu veículo sofreu um impacto muito forte na porta do carona. Parou o carro e foi verificar o ocorrido. Uma lambreta havia ficado sem o freio e seu condutor não pode pará-la. Resultado: uma porta danificada e a coluna da TL comprometida. Procurou saber das condições físicas do condutor, como era sua característica, se comprometendo a conduzi-lo para um hospital, se fosse necessário. Não foi preciso. Então, passou o Vilela a negociar o prejuízo com o cidadão que conduzia a lambreta. Esse confessou a sua culpa e comprometeu-se a indenizar as despesas com o conserto da TL, informando o endereço e que recebia seu salário no dia dez de cada mês. O Vilela, como bom mineiro, desconfiado, seguiu o cidadão em direção a sua residência. Ao chegar, pode constatar que o endereço correspondia aquele que havia sido fornecido pelo causador da batida. A moradia do responsável pelos estragos na TL estava situada num bairro popular de Goiânia.

Retornou ao quartel. Foi, mais uma vez, alvo de muitas gozações. Na manhã seguinte, acompanhei-o até a concessionária SAGA para que fosse realizado o orçamento e o conserto da TL. Dias após, o carro ficou pronto. A conta ficou, realmente, bem elevada. O Vilela acertou o pagamento e retirou o veículo.

Uma noite, após rever sua afilhada, comunicou-me que iria procurar o cidadão que foi o causador do estrago na TL e que apresentaria a conta, já que era dia dez do mês. Como de costume, recomendei ao compadre que ficasse atento aos perigos da cidade grande e, sorrindo, que evitasse se envolver em acidentes de trânsito.

No dia seguinte, no quartel, procurei o compadre para saber da conversa com o cidadão que ficou de lhe reembolsar as despesas com o conserto da TL. Ele acendeu um cigarro, deu uma tragada forte, expeliu uma boa quantidade de fumaça. Pensativo, procurou as palavras corretas para fazer a sua narrativa.

Disse, então, que se dirigiu para o endereço fornecido e checado anteriormente. O cidadão o recebeu. Reconheceu o Vilela e o fez entrar em sua humilde residência. Após os cumprimentos de praxe, o Vilela apresentou a nota fiscal emitida pela concessionária que realizou o conserto. O cidadão apreciou o documento contábil, realizou algumas perguntas relativas às peças trocadas e solicitou que o Vilela ficasse a vontade, enquanto ele iria se dirigir a um cômodo para apanhar o dinheiro.

O cidadão retornou acompanhado da sua esposa e dois filhos pequenos. Entregou ao Vilela, em dinheiro vivo, a quantia equivalente ao que estabelecia a nota fiscal. Informou que o montante excedia a sua remuneração mensal e, para poder cumprir a palavra de cidadão honesto, estava entregando, também, a poupança destinada a realizar a reforma tão sonhada da residência.

O Vilela, então, em razão do quadro apresentado, parou e reciclou as ideias. Que situação! Respirou fundo. Olhou para as crianças e pensou nos sofrimentos que iriam passar sem os recursos financeiros para as suas necessidades básicas do mês. Será que alguma criança faria aniversário nesses dias?

Como num estalo, perguntou à senhora se ela poderia fazer um café. A resposta acompanhou a surpresa com a pergunta: sei! Ato contínuo a senhora retira-se com as crianças para a cozinha. Virando-se para o cidadão procurou saber de sua profissão, de seus projetos para o futuro e tudo que pudesse preencher o tempo para que a senhora preparasse o café.

O café parecia com aquele que sua querida mãe aprendera a fazer. Tinha um pouco da sabedoria mineira na arte de preparar essa bebida tão apreciada pelos brasileiros. Para sua surpresa o café foi acompanhado por pedaços de bolo de milho. A senhora incorporou a conversa e falaram sobre diversos assuntos.

De repente, o Vilela percebeu que o adiantado da hora solicitava que ele deixasse aquele ambiente saudável e familiar. Levantou-se, cumprimentou a senhora, agradeceu pelo café, a conversa tão agradável e retirou-se. A porta, o cidadão entregou-lhe o dinheiro. O Vilela recusou e disse para o cidadão que o café preparado pela sua esposa era mais que o suficiente para ressarcir os danos com a TL. Foi assim que aconteceu, disse o meu compadre.  Não tinha como cobrar aquela dívida. Achei que o café, a conversa amigável e os sorrisos daquelas crianças superavam o valor do conserto da TL. Vou arcar com o prejuízo. Para isso, vou diminuir as minhas farras e realizar uma economia forçada. Entretanto, vou dormir o sono dos justos. As lágrimas encheram os meus olhos e fiz questão de lhe abraçar. Que gesto magnânimo! Quanta bondade existia naquele ser humano.

Alguns iriam negociar o valor da despesa de acordo com as possibilidades daquele operário e chefe de família. Outros entenderiam que ele teria que pagar pelo conserto da TL conforme foi estabelecido. É o ser humano com suas visões diferenciadas de uma mesma questão.

Todos sabem que o Vilela teve uns tropeços em sua vida. Talvez a inocência e pureza de espírito tenham contribuído para que alguns obstáculos apresentados ao longo de sua existência não fossem superados. Entretanto, relato este episódio como a representar toda a sua bondade e imensa compreensão com os seres humanos mais necessitados. Afirmo que a atitude do Vilela pode definir a prática da caridade em sua grandeza e plenitude.

Certamente, Deus o recebeu de braços abertos, meu compadre, porque seus atos de amor ao próximo aqui na terra representaram a credencial a lhe abrir as portas do paraíso que nós, os cristãos, acreditamos.

Brasília, 09 de março de 2012

Simões Junior – Cel Inf e compadre do Vilela.{jcomments on}