O CORONEL, O SOLDADO E A FERRAMENTA.

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Era o ano de 1985 e eu, capitão aperfeiçoado, comandava a Companhia de Comando da Brigada de Infantaria Pára-quedista. Aproximava-se o início da Operação SACI e a Brigada vivia uma agitação fenomenal. Afinal, essa operação era o exercício de campo que coroava o ano de instrução da Brigada e todas as atenções estavam direcionadas para a FT SANTOS DUMONT. Os meios disponíveis da FAB eram canalizados em apoio ao desenvolvimento do componente aéreo da operação. Os Estados-Maiores da Brigada e da FAT faziam seus acertos para que o assalto aeroterrestre pudesse contar com o maior número de aeronaves, o que acrescentaria ao exercício a qualidade desejada em termos de planejamento e execução. Os integrantes da 3ª Seção e Seção de Planejamento da Brigada realizavam os cálculos das necessidades em querosene de aviação, Classe I e pára-quedas, entre outros itens de suprimento de relevância para a operação.

A minha subunidade tinha, também, um papel importante nessa operação. Além de apoiar o Comando da Brigada no desdobramento do Posto de Comando na área de operações, seus integrantes mobiliavam as diversas seções de Estado-Maior e, também, as denominadas de repartições administrativas. Fui convocado pelo chefe da 3ª Seção e lá compareci. Adentrei a imensa sala situada no QG, cumprimentei os oficiais e praças, notando a grande agitação reinante. Apresentei-me ao Chefe e, após as saudações, sentei-me.

O Chefe da 3ª Seção da Brigada era o coronel de Artilharia WENCESLAU MALTA. Suas qualidades profissionais eram sobejamente testadas pela diversidade de missões que lhe eram afetas e pela própria dinâmica que a atividade de salto acrescenta a qualquer modalidade de instrução militar. Por diversas vezes pude observar a forma peculiar com que o Chefe da 3ª Seção controlava as situações adversas, empregando a sua experiência profissional e o bom humor, fatores que contagiavam aqueles que se encontravam trabalhando sob suas ordens. Em determinada ocasião, uma subunidade de um Batalhão que acabara de realizar um exercício em Boa Vista (RR) necessitava de resgate aéreo com urgência. Entretanto, as aeronaves inicialmente direcionadas para aquele apoio tinham sido deslocadas para atender uma calamidade em parte do território nacional. Ao mesmo tempo, o Centro de Instrução solicitava prioridade para resgatar os alunos do Curso de Forças Especiais que haviam terminado uma semana de intensos exercícios em Porto Murtinho (MS) e deveriam se deslocar para o CIGS, em Manaus (AM). Como conseguir aeronaves para atender as necessidades apresentadas naquele momento, no desenrolar de tantas outras missões em andamento? No calor de toda aquela situação delicada o coronel reagia da seguinte forma: abria um sorriso que deixava dúvidas se era de pavor ou zombaria com o problema apresentado e, ato contínuo, disparava uma série de impropérios. Após essa natural descontração, começava a distribuir ordens que contribuíam para solucionar aquela momentânea dificuldade. Normalmente, conseguia o seu intento com sucesso e a paz voltava a sua seção. Por pouco tempo.

O coronel Malta foi campeão olímpico de pentatlo moderno, um dos mais destacados atletas do Exército e orgulho da Turma de 1954 da AMAN. Como ser humano, era uma pessoa dotada de excelente humor, educado, prestativo e sabia valorizar a vida com intensidade. A prática de esportes contribuiu para que ostentasse uma capacidade física invejável. Exímio jogador de dupla de voleibol confiava na sua habilidade no trato com a bola e o domínio da quadra. Dessa forma, mantinha uma caderneta destinada a controlar os militares e civis que lhe deviam rodadas de chopes, em razão de partidas perdidas em calorosos embates nas quadras de areia, cimento e praia. O nome naquela caderneta era motivo de gozação.

Como já narrado, encontrava-me sentado em frente a sua mesa de trabalho para acertar os detalhes do apoio que a companhia deveria prestar ao Comando da Brigada na Operação SACI. Inicialmente, negociávamos a composição da minha equipe na operação, em face das restrições de aeronaves. De repente, toca o telefone e o coronel identifica do outro lado da linha um major da AD/1, velho freguês de dupla de voleibol e perdedor sempre ávido a solicitar uma revanche, em razão de sua dívida em choppes alcançar números preocupantes para um jogador com reputação naquela atividade. O major estava desafiando o coronel para uma partida na quadra do QG da Brigada, às 16h30min daquela tarde. Rapidamente, como uma águia a espreita, o coronel quis saber quem era o parceiro do seu desafiador, pois esse dado era fundamental para que ele pudesse avaliar os riscos e escolher quem seria o seu companheiro na partida. O major respondeu que era um tenente de Artilharia. Completou, acrescentando o nome, a unidade e a Turma da AMAN. O coronel anotou os dados e, prontamente, aceitou o desafio. Antes, porém, lembrou ao major que a partida seria realizada de acordo com a cláusula mais importante do regimento interno que controlava aquele tipo de embate: o perdedor pagaria dois choppes ao vencedor.

Enquanto acertávamos detalhes da operação, ele emanava uma série de ordens. Solicitou que fosse realizada uma ligação telefônica com o comandante do 8º GAC Pqdt, em razão do tenente ser de Artilharia e, como explanado, ele precisava de informações sobre o oficial subalterno que jogaria ao lado do major. Comandava a unidade o Coronel de Artilharia Ary Schittini Mesquita. Ele recebeu do coronel Malta a solicitação de localizar um tenente que pertencesse a Turma de AMAN do parceiro do major. Pouco depois, ligou um tenente do GACPqdt e passou informações vitais para o coronel. Revelou que o seu companheiro de Turma era um excelente jogador de voleibol, com passagens pela seleção da Academia, Festival Sul-Americano de Cadetes e das Forças Armadas. Um verdadeiro atleta, consagrado campeão da modalidade e hábil no jogo de dupla. Percebi que, a partir dessas informações, o Chefe da 3ª Seção demonstrava preocupação com o adversário. Ele, então, revelou que precisava alterar a estratégia para derrotar o velho freguês.

Um dos seus parceiros mais habitual era o então capitão Fernando Azevedo e Silva, da Turma de 1976 e atual oficial general, com passagens pelas diversas seleções da Força e excelente jogador de dupla. Mas, para aquele embate, era preciso equilibrar as equipes no quesito juventude. Para tanto, realizou um contato telefônico com o comandante do 20º BlogPqdt, Coronel Eng Manoel Cândido de Andrade, ao qual solicitou que o soldado Marcos fosse liberado para estar na quadra de voleibol do QG da Brigada, naquela tarde, às 16h30min. Recomendou, com muita ênfase, que o soldado não se esquecesse de conduzir a ferramenta.

Não pude me conter e questionei que ferramenta era aquela e porque a escolha do soldado Marcos. O coronel disse-me que o soldado era levantador do time de Voleibol do Botafogo, que a época possuía o melhor esquadrão do Rio de Janeiro, o que equilibraria a contenda quanto o aspecto juventude. Quanto à ferramenta, manteve a surpresa. Ele convidou-me a assistir a partida e verificar, com os próprios olhos, a necessidade e a importância daquele instrumento específico de trabalho para o embate.

Passei o restante da manhã pensando qual seria a importância da misteriosa ferramenta e torcendo que chegasse logo à hora da partida. Após realizar a formatura rotineira de término de expediente e dispensar a subunidade, iniciei o deslocamento para o Quartel-General da Brigada, local onde seria realizada a partida. Ao Chegar, encontrei o major e seu parceiro. O oficial superior vestia um calção preto e demonstrava possuir intimidade com a atividade que iria desenvolver. O seu parceiro, jovem oficial subalterno, não poupava esforços para evitar que a bola tocasse o chão, naqueles momentos de aquecimento que antecedia a peleja. A impressão que se tinha era de que o entrosamento da dupla chegava próximo da perfeição. Tudo pronto. Faltavam o coronel Malta e o seu companheiro de equipe.

Não foi difícil identificar o soldado Marcos. Àquela hora, somente estavam no QG o pessoal de serviço e alguns integrantes da 3ª Seção. Dessa forma, qualquer outro militar que estivesse na área da quadra chamava a atenção. Visualizei, a uns vinte metros, um soldado com uma tesoura de cortar grama. O dito cortador, aliás, enganador, devia ser o soldado Marcos. Fingia que estava realizando uma tarefa árdua e cumpria seu papel no espetáculo preparado pelo coronel.

Chega o coronel Malta. Aos berros, reclama do atraso do capitão Fernando e solicita que o Comandante da Guarda do QG realize ligações telefônicas para o Destacamento Precursor Pqdt e baiúca dos Afonsos, na busca do paradeiro do citado oficial. Ora, o capitão Fernando estava realizando uma atividade longe do Rio de Janeiro e nem sabia da partida. Tudo era uma encenação da velha e ladina raposa. Claro que o capitão não foi localizado e, no momento, crescia a possibilidade de a partida não se realizar.

Ao perceber a situação, o major começa a lamentar que a partida não fosse acontecer e que, pensando com seus botões, ele não poderia perder a chance de derrotar o coronel, abatendo de sua extensa dívida dois choppes. Foi uma atividade estudada com muita cautela. Idealizada e programada para vencer, principalmente, em face da escolha de seu parceiro. Tinham realizados vários treinamentos e o momento era aquele. Talvez não houvesse outra oportunidade como a que se apresentava.

O coronel, então, é pressionado pelo major. Demonstrando ansiedade, o desafiante afirma que a partida precisa ser realizada. A ausência do capitão Fernando não pode ser motivo para suspender a peleja.  O coronel argumenta que não iria correr de um desafio, pois tinha uma estória de conquistas a defender. Era só encontrar um parceiro. Qualquer um! Exclama o coronel.

Momentos de tensão.

O coronel procura, olha para todos os cantos e, num lance estudado, localiza o solitário soldado. Concentra o olhar na direção do soldado, que continuava fingindo estar utilizando a tesoura, e pergunta: “Mocorongo! Ei! Mocorongo! você sabe jogar voleibol? Com hesitação, o soldado responde que sim, sem demonstrar muita firmeza, como se a sua participação fosse apenas para permitir a realização da partida. Virando-se para o major, o coronel, com a expressão facial de lamento, questiona: “Aceita ele como meu parceiro?

O major ou qualquer cristão que estivesse assistindo a cena jamais iria pensar ou acreditar que um soldado, com uma tesoura de cortar grama, pudesse incomodar uma dupla treinada e pronta para derrotar qualquer adversário. Também, deve ter pensado, que sorte a deles que aquele militar estava ali naquele momento. O coronel não poderia convocar um soldado da guarda do QG. Impossível essa hipótese. O major deve ter raciocinado: “um soldado e, ainda, portando uma tesoura de cortar grama. Chamado de mocorongo. Isso é sopa demais”. Aceitou.

O coronel, então, convoca o soldado para a partida e alerta, em tom baixo: “Marcos! garoto! mesmo esquema de sempre, perdemos a primeira e ganhamos as outras duas”. Virou-se para mim e falou: “percebeu, capitão, que ninguém acredita que um soldado, manuseando uma tesoura de cortar grama e sendo chamado de mocorongo, possa ser um excelente jogador de dupla de voleibol. Esse é o mistério da ferramenta. A sua presença no local da contenda confunde o adversário”. Concluiu, com o sorriso maroto.

Foi o que aconteceu. Derrota do major e do tenente. Ao término da partida, pude ver o coronel anotando mais dois choppes na conta do major, em sua inseparável caderneta. O coronel Malta, que era um cavalheiro, convidou para que todos fossem ao “MARLENE”, tradicional restaurante localizado em frente ao Portão da Base Aérea dos Afonsos, a fim de consumirem rodadas de choppes. É claro que seriam pagas pelo major, naturalmente.

Relembrando esse episódio, presto minha homenagem ao chefe e amigo, no momento em que tomo o conhecimento de seu passamento, em dezembro de 2010. De luto o Exército Brasileiro, a Artilharia Pára-quedista, seus amigos, admiradores e jogadores de dupla de voleibol.

Cadete 1247 Simões Junior – Curso de Infantaria - AMAN 1972.{jcomments on}