ARMADILHAS VERBAIS

Comente este artigo!

Submit to FacebookSubmit to Google PlusSubmit to TwitterSubmit to LinkedIn

alt

Mesmo ao ateu mais empedernido ressoa familiar a citação bíblica da abertura do Evangelho de João – “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”- estabelecendo comunhão arquetípica com o Criador através da palavra.  Muito antes, o filósofo grego Heráclito aportara no logos, concepção cósmica comum a religiões e culturas. Mas os seres humanos, esses imperfeitos, logo – sem trocadilho - bagunçaram o palco.

   Expressar-se e se fazer entender, baita complicação! Começa que entre a idealização e a manifestação verbal interpõem-se bilionésimos de segundos, provocando distorções na mensagem irrompida no cérebro. Nunca se fala ou se escreve exatamente o que se pensa, e nessa desconexão viciosa principiam os problemas da comunicação. Assim como a percepção das coisas mundanas, na vontade e representação de cada indivíduo – valeu Schoppenhauer! -, dependemos de mecanismos neuropsicofisiológicos alheios ao próprio controle para o exercício do livre opinar. Além da disponibilidade perceptiva do interlocutor, claro.     

    Uma palavra mal dita – olha o perigo rondando – pode tornar-se maldita; inocente citação descontextualizada, motivo de aborrecimentos eternos; chiste ingênuo, fagulha a chamuscar amizades. De tanta confusão potencializada, a questionável sabedoria popular cunhou o ditado – “O silêncio é sábio” – que nem sempre é verdade, apesar de nos abrigar de incompreensões descabidas.  Avanços tecnológicos amplificaram os problemas.

    Nas redes sociais, a coqueluche da comunicação digital – instantânea e descontrolada – incendiou o planeta como em nenhuma outra era. Recorde-se: os avanços da escrita impressa ainda manifestam-se tímidos em várias partes do mundo, nos baixos índices de leitura de populações imensas; entretanto, tablets e gadgets de última geração operam furiosos na aldeia mais remota do Curdisquistão ou do sofrido Haiti. As massas triunfam, mas não se mancam.  

   Mais do que a mãe-natureza, a aventura do viver impõe limites à palavra - certo Dr Sigmund vienense chamou a isso superego – mas o zapazap, e parceiros, tem concorrido para desacreditar as descobertas ensaiadas na Rua Berggasse 19 pelo conhecido desbravador da mente humana. Antes de falar, pensar; antes de escrever, pensar em dobro, recomenda prudência geralmente negligenciada em aplicativos grupais, onde se requer descontração para suportar discordâncias, ou ataques frontais. Falar é se arriscar, calar é se abrigar...     

    Sem tempero, não existe prazer. Sem bom humor, conviver perde a graça. Rir de si mesmo sugere a males espirituais e corporais terapia infalível, infelizmente muito relegada nos tempos correntes a nicho existencial subalterno. Quem ri mais, e não se leva a sério demais, alonga e melhora a qualidade de vida. Sou testemunha, no dia a dia funcional. Apesar de tudo, escorreguei em casca de banana, melhor dizendo, na pasta do caviar.         

    Acontece que dois amigos diletos atropelaram-se a esclarecer o consumo de ovas de esturjão – russo ou iraniano? – em celebrações castrenses, depois do meu estarrecimento declarado ante o inusitado acepipe, conflitante com a austeridade supridora de aquartelamento tradicional. Explica daqui, justifica dali – desnecessário, aliás - os estimados irmãos de arma pespegaram-me os epítetos gentis de “bullying de companheiros” e “línguas ferinas e malsãs que infestam o zapzap”. Caraca!!! Não se fazem mais sarissófaros zen como antigamente, ruminei pesaroso: na velha e boa Cavalaria, contenciosos assim desfaziam-se nas baias, complementados por uma prova hípica, um jogo de polo, e uma churrascada, que ninguém é de ferro.    

   Meus amigos continuam diletos, barbaridade. Mas previno-os de que o zapzap é campo de batalha sem dono, infestado de armadilhas em que a zoada fraterna representa molho verbal ingênuo a temperar momentos de sensaboria virtual. Orientem-se, centauros!

    Aguardo-os nas baias. No mínimo para antepasto de churrasco gaudério, antes que a modernidade definitivamente os transforme em porta-vozes saudosos de petiscarias polêmicas.      


Rio, 28 de fevereiro de 2016.

Dom Obá III, ao galope, lança em riste, bandeirola rubra desfraldada{jcomments on}