CRAQUES, ENGRAXATES E GNOMOS

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    Antigamente, quando o craque estufava as redes adversárias marcando um gol delirante, companheiros de time o reverenciavam simulando engraxar-lhe as chuteiras.  No transbordamento da emoção represada ritualizavam loas ao virtuose, ao fora de série elevado a semideus, ao herói na concepção grega. Guardo na retina cenas assim, hoje raras, talvez devido ao empobrecimento do velho esporte bretão, à escassez de craques ou ao fato de as chuteiras não mais se prestarem a ser engraxadas...

    Lustraria os calçados de expoentes merecedores da minha admiração irrestrita. Em catarse recente, após retiro no barraco montanhês onde moro, externei irretratável conformismo ao reconhecer que nesta edição terrena jamais conseguirei abordar, nem sonhando, os talentos inatingíveis de destacados confrades similares a artilheiros de gols memoráveis d`antanho.

    Fora da Turma, engraxaria os sapatos para luminares de diferentes extrações. Alguns, pela importância histórica dos seus legados: grandes filósofos, líderes militares, cientistas e artistas. Outros, pela contemporaneidade criativa e influência no amainar a dura lida existencial. O que seria de nós, ou de mim, sem os craques Pixinguinha, Noel Rosa, Wilson Baptista,  Nelson Cavaquinho, Djalma Ferreira, Luiz Antônio, Antônio Maria, Johnny Alf,  Moacyr Silva, Durval Ferreira, Donato, Elizeth, Leny, Emílio, Tom, Newton Mendonça e Vinícius, na música brasileira? 

    E o que dizer da confraria jazzística? Armstrong, Hawkins, Billie, Duke, Bird, Miles, Dizzy, Buddy, Errol, Thelonius, Coltrane, Chet, Ella, Sarah, Carmen, big bands, afro-cubanos; Sinatra, Dean, Nat,  Hartmann e Crosby, na canção; Little Richard, Beatles, Ray e  Stevie, popstars. Nos esportes, os timaços do lendário Expresso da Vitória, as seleções de 58, 62 e 70, Friendenreich, Barbosa, Bellini, Pelé e Garrincha; as seleções de basquete de 59 e 63, as de vôlei a partir dos anos 1990; no atletismo, Ademar, João do Pulo e Prudêncio; Fittipaldi, Piquet e Senna. E la nave va com infindáveis opções.

    Sempre admiramos alguém, por algum motivo. Infinitas são as fontes motivadoras da admiração, às vezes inexplicáveis por falta de lógica aparente ou de sustentação ideológica. Vagas reminiscências escolares de antigo Curso de Psicotécnica Militar realizado no CEP, circa 1985, junto aos queridos mestre Gomes, Carloub, Vita e o saudoso Guedinho/Inf, encorajaram-me a bisbilhotar assunto de tamanha complexidade. Mas, como qualquer cavalariano intui, sem certa cara de pau e ousadia não se atravessa a rua para comprar picolé na sorveteria da esquina. 

   Relembrando o Dr Sig, os assombrosos dragões canibalescos deste mundo são as forças da natureza, a vida na civilização e o inexorável destino da finitude corpórea, na morte.  À renomada tese acrescento vilões insuportáveis a qualquer ser vivente: o PT, o Framengo e o batidão funk-breganejo.  Embora contumaz gazeteiro nas aulas do CEP, agradeço-lhes por resistir a impulsos destrutivos de personalidade perante os tais acréscimos.   

   Adentrar o universo freudiano revela mais surpresas que a tal caixinha-clichê do futebol, principalmente a penetra vulgar como este mentecapto. Dos complexos aos mecanismos de defesa nada escapa ao olhar iconoclasta do Dr Sigmundo, que se vivo estivesse balançaria ainda conceitos arraigados, dando panos pras mangas com suas ideias reformadoras.  Considere-se a admiração mórbida do oprimido pelo opressor, popularizada nos anos 1970 na chamada Síndrome de Estocolmo, categorização das declarações simpáticas, pós-sequestro, de sequestrados aos terroristas que os capturaram em pleno voo comercial, e os mantiveram reféns na capital sueca durante longo período. Bingo! Insight clarividente iluminou-me a mente.

     Atribuí a mística da Turma, em boa parte, à simpatia dos seus integrantes, tantos são os comentários favoráveis insuspeitos.  Luxuosos adendos ratificaram-me percepções idealizadas. O Micelli, referendando citações ao Brito e ao KbçA, o Simões dissecando personalidades, e o profeta do califado salvânico relatando experiência histórico- metafísica que me assombrou. Sim, assombrou...  

    Conciso e elegante, primeiro o zen-califa Damerran descreve visita de ex-ministro do EB às antigas instalações do Centro de Instrução de Blindados. De um lado o Cmt Aço, vibrante e desenvolto na pele de cavalariano destemido; do outro, Cmt OM, também da Arma Ligeira, inseguro e inibido diante da figura do ministro que, perspicaz lhe indaga – “Cmt,  por que o senhor não sorri?  Parece infeliz, está triste com o comando da sua Unidade, das mais prestigiadas da Cavalaria?” - Ato contínuo, o antes taciturno Cmt reconhece a própria tensão, desanuvia o semblante e a partir daí bate um bolão. Compreendera o poder funcional da simpatia.

     Depois, o assombro. Do Realengo o zen-califa longe viajou na memória até aterrissar nos cafundós da Amazônia, em plena selva tropical. Breve e incisivo, no relato de vivência fantástica, lá avista a poucos metros de si um inacreditável gnomo que, paralisado pela aura amistosa do lendário Cmt tanquista, lhe abre contagiante sorriso de boas vindas à floresta impenetrável. Estava selada para sempre, naquele momento mágico, a eterna aliança entre a Cavalaria e a Feitiçaria.  Era o gnomo engraxando os coturnos do fero Damerran.     

    Ora, se o gnomo deixou-se seduzir pelo suposto opressor, nada mais resta a argumentar. Ninguém da Tu MMM 72, incluídos os seus maiores craques em qualquer modalidade, se eleva à magnitude simpática do pensador e filósofo praiano Ivo Salvanyus. Em consequência deveríamos, sem exceção, engraxar-lhe as botas de Pelé da simpatia e do bem viver.    

   Aliás, somos todos gnomos encantados, sorridentes, felizes perante o Cmt Aço, bradando a uma só voz: Ferro e Aço!!!   Fogo e Balaço!!!

 

Rio de Janeiro, 04 de setembro de 2014.

 

Dom Obá III, gnomo de carteirinha das selvas de pedra.{jcomments on}