Espadim (55 Anos)

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           Ficamos aliviados quando vimos que o dia amanheceu ensolarado. A semana havia sido bastante cansativa, devido ao treinamento para a cerimônia, e não teria a menor graça se tudo acabasse acontecendo no auditório.

            Foi uma semana dura. Levantar, cedo, fazer a barba, escovar os dentes enquanto tomava banho (não foi só o Einstein que descobriu isto!), ou usava o mictório (esta ele não descobriu, ou, pelo menos, não divulgou), trocar o uniforme e encarar quatro horas de treinamento pela manhã e mais quatro à tarde, sob o sol escaldante e a secura de agosto. Mas todo aquele sacrifício ia valer a pena, pois sabíamos que, ao final daquela semana, estaríamos sendo vistos e ouvidos por aqueles a quem amávamos.

A véspera, a "Noite de São Bartolomeu", foi uma loucura. Os veteranos, em peso, desceram pra dar o último trote na "bicharada" e, só depois da turma cansar e resolver ir pra farra ou pra cama, é que pudemos voltar a nos preparar para o grande dia: passar o uniforme, lustrar os metais, engraxar os sapatos, e lembrar que não seria, apenas, mais uma simples manhã de sábado, com revista de uniforme que sempre colocava em risco o licenciamento, seguida de uma daquelas palestras enfadonhas. Seria um dia especial.

            Antes de iniciar uma cerimônia deste porte, a expectativa é grande e o nervosismo normal, principalmente pra um “paisanão” como eu, que não possuía experiência anterior em eventos deste tipo (Não posso errar! Vai chover? Será que meus pais poderão vir? Quem será da família que vem? E ela? Será que ela vem?)

            E vieram todos: mãe, pai, a tia e o tio com quem eu morei até ir pra Academia, irmãs, primas, a cunhada e, é claro, ela. Foi preciso um micro-ônibus para caber todo mundo. Senti um alívio ao ver, um pouco antes de tudo começar, que todo mundo que importava já tinha chegado.  E eu não ia errar nada, de jeito nenhum. Tudo tinha de sair direito e ficar bonito pra eles.

           Naquele momento, ainda jovem, não me dei conta que muitos dos meus companheiros não puderam ter a mesma alegria que eu, pois os pais e as namoradas, ou não avaliaram a importância daquela cerimônia, ou não puderam ir, pela simples falta de recursos.

            Pouco antes das dez horas da manhã soou o toque de formatura e tive que me despedir dos parentes e da namorada para entrar em forma. Ia começar a festa.

            Às dez horas, em ponto, soou o bumbo e partimos. Duvido que alguém que não tenha passado por experiência similar possa avaliar qual é a emoção de entrar naquele pátio, cantando, a plenos pulmões, a Canção da Academia e, a cada batida do bumbo, executar os movimentos exaustivamente treinados na semana anterior.  E tudo funcionou com a precisão de um relógio suíço. 

            Como havíamos treinado, logo de início, abrimos o dispositivo, para a entrada da Bandeira Nacional. Se, ainda hoje, me emociono ao ouvir a protofonia de "Los Chiavos" seguida pela Canção do Expedicionário, imaginem como não foi naquele dia, quando, além da emoção de participar de tudo aquilo, aqueles acordes me trouxeram à lembrança, a figura de meu avô, um ex-Expedicionário.  

            Em seguida, vieram os discursos e a entrega dos prêmios aos que se destacaram naquele primeiro semestre acadêmico. O primeiro colocado da turma, hoje general, ao receber a ordem para se dirigir ao local pré-determinado, partiu, lá de trás, onde ficam os mais baixos, garboso e quase sumindo debaixo da barretina, para receber o espadim das mãos do Presidente da República (ao longo de sua carreira, ele iria mostrar que mereceu, de sobra, a honraria e que, de pequeno, só tem a altura).

            Após o primeiro colocado receber o seu espadim, a parte mais esperada: a entrega dos espadins aos outros cadetes, pelas mães e madrinhas. Foi a melhor sensação que já senti na vida: sucesso, superação, orgulho dos pais e parentes, o carinho da namorada. Naquele momento, eu podia tudo. O mundo era meu quintal.

            Mais um toque, e a turba, parecendo que também havia treinado, sai do pátio para a parte final: o juramento à Bandeira Nacional, a nova formação da Cruz de Malta para a retirada do Pavilhão Nacional e o “fora de forma” seguido da saída do pátio para as fotografias e os cumprimentos mais demorados.  

            Fim da cerimônia militar. Agora era ir pra casa e se preparar para o baile. Que dia!

            Passaram-se cinquenta e cinco desde então, mas é só parar pra lembrar, que cada som, cada imagem e cada movimento feito voltam à memória como se tudo tivesse acontecido há poucos meses. Não há outra maneira de descrever: foi marcante, e inesquecível.

            Por vários motivos, acabei me afastando do serviço ativo mais cedo do que havia planejado, contudo, quando, pelo meu modo de ser, ou pelas histórias que conto, alguém me pergunta se fui militar, a minha resposta é uma só: não, eu não fui, eu sou militar.      

           

Brasília/DF, 23 de agosto de 2024

202º da Independência, 135º da República e 55º do Espadim (Turma Marechal Mascarenhas de Morais)